Impossível dizer melhor que João Lopes aquilo que é o último filme de Larry Clark, por isso aqui fica:
Entra-se no filme «Ken Park», de Larry Clark, como quem entra numa paisagem conhecida e, ao mesmo tempo, irreconhecível. Conhecida porque se trata de retratar as vidas de um grupo de adolescentes «típicos», algures na cidade de Visalia, Califórnia. Irreconhecível porque muito cedo percebemos que estamos perante um objecto empenhado em discutir, ponto por ponto, as formas correntes de representação da adolescência. Mais do que isso: as suas relações afectivas, as suas relações com o universo dos adultos e, no limite cinematograficamente mais radical, as suas relações sexuais. Antes de conhecermos o filme, é natural que interpretemos o título como uma alusão a um lugar. Mas não: Ken Park é o nome de um dos adolescentes. Cada personagem funciona, afinal, como lugar visível de uma história rasgada por muitos dramas invisíveis. Na sequência de abertura, vemos Ken (Adam Chubbuck) a praticar «skate» numa zona pública de Visalia. Senta-se, coloca a seus pés uma câmara de video, liga-a e aponta-a para o rosto. Logo a seguir, Ken tira uma pistola do saco, aponta-a à sua cabeça e dispara - ainda não terão passado cinco minutos de filme e, em boa verdade, não sabemos que fazer com o desamparo que o invade e a sua pulsão trágica.
«Ken Park» traz consigo um rol de «escândalos» e «polémicas» (incluindo uma proibição num festival de cinema na Austrália) mais ou menos incontornáveis e que, em última instância, talvez não sejam a maneira mais salutar de lidar com a sua riqueza e complexidade. Não porque este seja um filme indiferente aos efeitos de perturbação que desencadeia (bem pelo contrário). Acontece que na sua génese não está exactamente essa lógica simplista, e muito televisiva, de expor o «interdito» ou de empurrar o espectador para a condição primária de «voyeur-ex-machina». Nada disso: se «Ken Park» se reivindica de alguma tradição formal é a do mais estrito realismo social. O filme retoma o essencial das opções de «Kids», que Larry Clark filmara em 1995, por sua vez refazendo muito do olhar frio e desencantado dos seus trabalhos como fotógrafo, nomeadamente o que está recolhido nos livros «Tulsa» (1972), «Teenage Lust» (1982) e «Perfect Childhood» (1992).
Não tem, por isso, nada de acidental que Larry Clark co-assine «Ken Park» com o seu director de fotografia, Ed Lachman (mestre entre mestres cujo trabalho mais recente inclui as imagens «Erin Brokovich», «Simone» e «Longe do Paraíso»). De facto, a concepção fotográfica de «Ken Park» é inseparável de uma ideia de realização que exclui qualquer ilusão de «reportagem» ou «espontaneísmo»: estamos, insisto, no interior de um espaço eminentemente trágico em que a relação de cada um com a sua própria sexualidade é o sintoma mais cruel de um estado de coisas em que o próprio conceito de humanidade está posto à prova.
Não admira que, ao contrário de «Kids», este seja um filme que coloca também em cena os pais e, de um modo geral, os adultos. Em «Ken Park», da mais banal (?) troca afectiva aos fantasmas sexuais, tudo se passa como se ninguém soubesse que tipo de diferenças ou hierarquias passaram a existir entre pais e filhos, adolescentes e adultos. Compreendemos, então, que isso está a alterar os corpos e os seus pensamentos. Compreendemos, sobretudo, que isso nos confronta com novas formas de solidão. E aí, ao tocar o extremo mais angustiante da própria tragédia, «Ken Park» afirma-se como um dos filmes nucleares de todo o cinema que o século XXI já produziu.
João Lopes, in DN